Portugal está decididamente na rota do TGV. O Executivo liderado pelo Primeiro-ministro José Sócrates apresentou no dia 13 de Dezembro no Centro de Congressos de Lisboa o projecto de Alta Velocidade português ficando assim garantido que ainda neste mandato se construirão as primeiras infra-estruturas necessárias ao TGV.
Para uns o projecto afigura-se desnecessário, e até irresponsável numa altura em que são exigidos inúmeros esforços: os impostos aumentam, levando a uma subida dos preços dos produtos, enquanto que os salários teimam em não subir, deixando à população um menor poder de compra. Miguel Beleza é um dos opositores a um projecto que apelida de megalómano, traduzindo em números a construção das quatro linhas: “O TGV custa o equivalente a ano e meio de IRS de todos os portugueses. Se não fosse construído o TGV podíamos deixar de pagar esse imposto durante um ano e meio.”
Para outros o projecto é fundamental para retirar Portugal da crise e impedir o atraso que o país já verifica nesta matéria em relação a outros países da Europa, sobretudo em relação à vizinha Espanha. Estudos revelam que poderão ser criados 100 mil postos de emprego.
Porém, quer um quer o outro lado dos argumentos não chegaram ainda à questão central. Talvez neste campo os media sejam também responsáveis, sempre interessados em números e prazos que façam as manchetes. E se lhe disserem que o que está em jogo não é o TGV? Se lhe disserem que aquilo que está a ser decidido está “escondido” para além da sigla TGV. De facto tem sido ela a grande responsável pela desinformação. Train à Grand Vitesse. É esta a descodificação da sigla, originária de França: Comboio a Alta Velocidade, traduzido à letra.
Bitola: uma adaptação necessáriaO principal problema de Portugal é então o que no meio ferroviário se designa por Bitola (distância entre os eixos das composições ferroviárias). Utilizada nos media, a sigla TGV tem sido, errada e comummente, confundida como designação para as linhas de bitola europeia em que circulam os comboios de alta velocidade. De facto, TGV deve só designar os comboios que circularão a velocidades acima dos 300 km/h. Esta confusão tem levado a que o público entenda que em todas as linhas os comboios circularão a esta velocidade. Assim não vai acontecer.
Clarificando: as linhas portuguesas (quer de mercadorias, quer de passageiros) são de bitola ibérica (166,8cm), ou seja, mais larga do que a bitola europeia (143,5cm), que equipa já o território espanhol e de grande parte da Europa. Assim, a construção do TGV em Portugal tem por base primeira a construção de linhas que permitam a Portugal estar ligado por ferrovia a Espanha e consequentemente ao resto da Europa. “A questão não é a implementação em Portugal de comboios a circularem a velocidades astronómicas, mas sim a da construção de um tipo de linha que impeça Portugal de se tornar uma ilha ferroviária”, como argumenta António Brotas, Professor Jubilado do Departamento de Física do Instituto Superior Técnico (IST). O professor esclarece ainda que em algumas destas linhas, de bitola europeia, circularão de facto comboios de Alta Velocidade, mas noutras isso não vai acontecer. “Em algumas das linhas circularão apenas comboios a velocidades mais baixas (200 km/h). É pois conveniente desfazer o equívoco de que Portugal vai só ter linhas para comboios a circular a mais de 300 km/h.”
Embora se afigure indispensável a construção das linhas de bitola europeia, as linhas de bitola ibérica, que neste momento possibilitam a circulação das carruagens, vão ainda subsistir durante duas ou três décadas, sendo conveniente, segundo o professor, “que à medida que forem sendo renovadas se pense desde logo na possibilidade de mais tarde virem a ser adaptadas para a bitola europeia, com a construção dos furos necessários ao estreitamento da via.”
Mesmo que o plano traçado pelo Governo não deixe já margem para dúvidas, a questão da construção das novas vias arrasta-se há já vários governos (a 1ª vez que se ouviu falar de TGV foi em 1988, no Governo então liderado por Cavaco Silva), e nem sempre a solução pensada passou pela construção de novos carris. Outras das soluções pensadas, e hoje posta de parte, foi a da utilização de intercambiadores, que permitissem a mudança de bitola ibérica para bitola europeia, quando os comboios tivessem de atravessar a fronteira e pisar território espanhol. Esta solução permitiria a Portugal manter as suas linhas, sustentadas por uma tecnologia que os espanhóis dominam pela sua posição de vanguarda.
A vantagem espanholaHá que ter em conta que Portugal não está sozinho nesta iniciativa. Do outro lado da fronteira, Espanha também joga os seus interesses. E devido ao seu avanço (por estar muito mais adiantada, quer em estudos, quer na construção propriamente dita), joga com vantagem. Mário Lino, Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, em entrevista ao Diário Económico referiu que “Portugal é um país atrasado, ainda para mais porque Espanha já tem alta velocidade há alguns anos. Além disso, não podemos deixar que se instale na Península Ibérica um esquema de mobilidade que tenha Madrid como único pólo.”
Por já estar numa fase mais adiantada do projecto de alta velocidade, Espanha definiu à partida os seus traçados não só em função do seu território, mas pensando em termos ibéricos, condicionando as possibilidades de Portugal. As linhas a construir hoje em Portugal terão obrigatoriamente de ligar àquelas de que Espanha já dispõe.
Tendo em conta que em Espanha já se circulará em bitola europeia e que Espanha não consegue introduzir os seus produtos em Portugal, devido ao conflito entre bitolas, Espanha poderá vender bem cara a tecnologia que permite aos comboios circularem em ambos os tipos de bitola. Os chamados intercambiadores podem sair bem mais caro do que aquilo que é o seu valor real. Se se tiver em conta que estamos a falar de uma tecnologia que não soluciona, mas adia a solução do problema, mais cara se torna.
Estudos incompletosFoi recentemente divulgado que Portugal dispõe de 50 milhões de euros para efectuar estudos. Uma verba elevadíssima e que, segundo António Brotas, depois de aplicada deve permitir retirar conclusões mais precisas sobre o comboio de alta velocidade. O professor aponta várias lacunas nos estudos até agora efectuados e a travessia do Tejo é uma delas. Existem actualmente três possibilidades: acima de Vila Franca de Xira, abaixo de Vila Franca de Xira (entre Alverca e Alhandra), ou uma ponte ferroviária entre Chelas e Barreiro, a hipótese mais forte, com um custo previsto de 1,2 mil milhões de euros. Outra das lacunas é a localização do terminal de Lisboa. Até agora, ainda não foi discutido (a hipótese mais óbvia é a gare do Oriente), tendo por isso de se fazer um estudo. Todas estas hipóteses apresentam as suas vantagens e desvantagens, estando por fazer estudos mais rigorosos e exaustivos.
Apesar dos estudos inconclusivos, o Governo liderado por José Sócrates definiu já as prioridades: Lisboa-Porto e Lisboa-Madrid, linhas que são auto-sustentadas na sua exploração (com maior tráfego, logo maiores receitas), mas para as quais ainda não se pode firmar contratos por não haver estudos. O investimento total rondará os 8,3 mil milhões de euros (quase três vezes a pagar pela OTA). O próprio trajecto da linha Lisboa-Porto, destinada exclusivamente a transporte de passageiros, é ainda uma incógnita pois exige a construção de um “corredor” com cerca de dez metros de largura na qual circulará o comboio sendo que há ainda a considerar o perímetro de segurança que rondará os 500 metros para cada lado. Neste espaço não pode existir qualquer tipo de construção ou circulação pelo impacto que causa a movimentação de um comboio a 300 km/h. Assim é fácil compreender as dificuldades da construção deste trajecto que atravessará todo o litoral nacional, a zona mais densamente povoada de Portugal.
“T”, “Pi” ou “L” – que traçado?A controvérsia surgiu também em torno de qual o modelo a adoptar para a implementação do traçado TGV em Portugal. O modelo “T” deitado foi proposto por Portugal na cimeira de Valência, em 2002, numa ligação que consistia numa linha desde Cáceres ao centro do nosso país (Tomar), sem passar por Mérida e Badajoz. Esta proposta não foi levada a sério porque estas cidades não iriam aceitar serem excluídas da futura linha de Alta Velocidade e porque os nossos representantes nem sequer apresentaram qualquer estudo referente a estes traçados.
Na cimeira luso-espanhola da Figueira da Foz escolheu-se o modelo “Pi” deitado. Esta opção permite uma ligação rápida entre Lisboa e Porto e três entradas em Espanha: por Badajoz, por Salamanca e por Vigo. A futura rede de Alta Velocidade (AV) e Velocidade Elevada (VE), em bitola europeia, deverá permitir a ligação entre os diferentes sistemas ferroviários da EU, circulando os comboios em AV, de velocidade máxima 350km/h, e em VE, de velocidade máxima 250km/h. Os comboios de AV farão a ligação entre os terminais mais distantes das linhas, sem paragens, ou com escala nas cidades mais importantes. Os comboios chamados AV Regional farão a ligação entre os pontos intermédios ou destes aos grandes centros urbanos.
O jornalista Carlos Cipriano, especialista em assuntos ferroviários, discorda do modelo do “Pi” deitado. Cipriano defende que o modelo mais adequado é o modelo em “L”, pois acredita que os factores económicos impossibilitarão a construção da linha que ligará Aveiro a Vilar Formoso, deixando assim isolado o Porto. Com este modelo, os utentes portuenses que queiram ir para Madrid têm de passar por Lisboa.
Mário Lino afirmou porém que “as ligações não prioritárias não estão em risco. O que temos de fazer é ver quais são as características que essas linhas têm de ter para se adaptarem à procura”.
Datas a cumprirNa cimeira luso-espanhola da Figueira da Foz, em 2003, decidiu-se a construção de quatro linhas em Portugal: Lisboa – Madrid em alta velocidade (AV) e Porto – Vigo, Aveiro – Salamanca e Faro – Huelva em velocidade elevada (VE). Já em Novembro deste ano, na cimeira de Évora, o primeiro-ministro José Sócrates comprometeu-se em construir as mesmas quatro linhas, mas alargou as metas antes definidas, alegando serem “irrealistas”.
Espanha já começou neste mês a adjudicar os contratos da construção da linha Madrid – Badajoz, que depois deverá continuar no sentido Badajoz e prolongar-se até Lisboa. Está previsto um atraso também do lado espanhol, devendo este troço estar acabado só em 2013, também, tal como o troço português.
“O prazo de 2013 poderia ser acelerado se Portugal tivesse condições financeiras mais folgadas. São datas perfeitamente ao nosso alcance, para desenvolver o projecto com rigor, transparência, com concursos públicos claros, que mobilizem o sector produtivo português”, reitera o Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações.