sexta-feira, agosto 18, 2006

Duas ou três ideias sobre Deus

"Em Maio de 1953 o semanário carioca Flan publicou um entrevista do poeta e compositor Jayme Ovalle, conduzida por Vinicius de Moraes. À pergunta, “o que é o câncer?”, respondeu Ovalle: “O câncer é a tristeza das células. A tristeza é que dá câncer”. A frase serviria de epígrafe a um poema de Vinicius, “Sob o Trópico de Câncer”, que começa assim: “Sai, Câncer / Desaparece, parte, sai do mundo / Volta à galáxia onde fermentam / Os íncubos da vida, de que és / A forma inversa”. O último verso, “Deus está com câncer”, ocorre-me com alguma frequência, sobretudo em momentos de desalento diante do estado do mundo. Não sei se Deus adoeceu, mas suspeito que há-de ter, realmente, perdido a alegria.

Na famosa entrevista conduzida por Vinicius, Ovalle também fala de Deus, aliás, com muito bom humor. “Deus fez muito rascunho”, diz: “o hipopótamo, por exemplo, é um rascunho de Deus”. E quando, logo a seguir, Vinicius quer saber porque fez Deus as mulheres feias, responde Ovalle: “As normalmente feias, Deus fez para casarem com homens bonitos. Quanto às irremediavelmente feias, foram feitas por Deus para povoar as igrejas de madrugada, para usarem grandes rosários e serem beatas”.

As longo dos últimos milénios a humanidade tem prestado culto a bosques, rios, insectos, serpentes, lobos, ninfas, anjos, gigantes, bodes, estrelas, montanhas, ao fogo, ao vento, à noite, e a todas as combinações possíveis entre isto tudo. Ainda hoje há quem cultue a pedra negra, e quem prefira rogar a ajuda de um simpático elefante com corpo de homem. Quanto a mim, de todos os deuses que tenho conhecido, em geografias muito diversas, afeiçoei-me sobretudo a um imenso Buda, algures na Malásia, que sorri, reclinado, enquanto dorme. Há também nos terreiros de condomblé, no Brasil, duas ou três figuras secundárias que desde há muito suscitam a minha simpatia e curiosidade. Um marinheiro, um negro elegantíssimo, de chapéu panamá na cabeça, e, sobretudo, um índio vestido com um cocar de penas e largas calças de couro. Não se trata de um índio brasileiro, como seria de esperar, mas de um índio norte-americano, saído directamente de um filme de caubóis. Suponho que a televisão e o cinema tenham tornado os índios norte-americanos mais familiares à generalidade dos brasileiros do que as suas próprias populações originais. Os pessimistas, talvez protestem, exaltados, ao darem com o índio – “alienação! Imperialismo cultural!”. Os optimistas, pelo contrário, dirão que a divindade é mais um exemplo da extraordinária capacidade integradora da cultura popular brasileira, que tudo devora e assimila. Os mais crédulos hão-de querer saber, simplesmente, o que come o santo e quais os seus atributos. Eu gosto dele porque me leva de volta à infância. Um deus que nos leve de volta à infância – pode haver melhor? Ao lado do índio poderia colocar ainda o Pato Donald e um carrinho de rolamentos. Mas o índio, claro, tem outra dignidade. Fica-lhe melhor o papel de pequeno Deus.

A filha de uma amiga, uma menina de dois anos, ouvindo falar de Deus (a políticos e sacerdotes, bonecos animados, cantores e modelos) ficou curiosa. Sacudia, imperativa, as saias da mãe: “A menina quer Deus!”. Um dia, porque ela insistisse, já chorando, e não havendo um deus que a sossegasse, deram-lhe o objecto que estava mais à mão: uma caixa de sapatos vazia. Resultou. Agora ela arrasta a caixa de sapatos para todo o lado. As visitas, vendo-a tão atenta à caixa, perguntam-lhe:
– O que levas aí dentro?
E ela, impávida, como os seus grandes olhos líquidos:
– É Deus!
Não a contesto. Acho mais provável que habite um deus dentro daquela caixa, venerando a menina, olhando para ela e protegendo-a, do que na casa daqueles que matam, ou se deixam matar, em nome Dele."

José Eduardo Agualusa
Pública, 13 Agosto 2006

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

obrigada

11:45 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Li recentemente um livro " Os Jardins de Luz" de Amin Maalouf, que retratam a vida de Mani, um homem de um outro tempo, ou talvez de outro planeta, que nasceu no ano de 216 da era cristã, ou no ano 527 segundo os astrónomos de Babel. É um exemplo de tolerância religiosa. Do livro guardei uns apontamentos interessantes, cito dois:

"Um dia, perguntaram-lhe:
-Que nome tem aquele de quem és o mensageiro?
-Eu chamo-lhe «oRei dos Jardins de Luz».
-Então não é o pai, o Todo-Poderoso, o infinitamente bom, o Criador de todas as coisas?
-Como poderia ele ser ao mesmo tempo bom e todo-poderoso? Foi porventura ele quem criou a lepra e a guerra? É ele quem deixa morrer as crianças e maltratar os inocentes? Foi ele quem criou as trevas e o seu senhor? Permitiu que este último existisse? Se pudesse aniquilá-lo com um gesto, porque não o faria? Se não quer aniquilar as trevas, é porque não é infinitamente bom; se quer aniquilá-las mas não o consegue, é porque não é infinitamente poderoso.
Após um breve silêncio, acrescentou:
-Ao homem é que foi confiada a Criação. É principalmente a ele que compete fazer recuar as trevas."

"-Professo todas as religiões e nenhuma. Ensinaram aos homens que eles deviam pertencer a uma crença como se pertence a uma raça ou a uma tribo. E eu digo-lhes: mentiram-vos. Em cada crença, em cada ideia, sabei achar a substância luminosa e separar as cascas. Quem seguir a minha senda poderá invocar Ahura-Masda e Mitra e Cristo e Buda. Aos templos que eu edificar, cada qual virá com as suas orações.
«Respeito todas as crenças, e é afinal este o meu crime aos olhos de todos. Os cristãos não escutam o bem que digo do Nazareno, eles censuram-me por não dizer mal dos judeus e de Zoroastro. Os magos não me ouvem quando faço o elogio do seu profeta [Zoroastro], só querem ouvir-me amaldiçoar Cristo e Buda. De facto, quando reúnem o rebanho dos fiéis, não é em volta do amor mas do ódio, é apenas em face dos outros que eles se encontarm solidários. Apenas se reconhecem como irmãos nos interditos e nos anátemas, e eu, Mani, longe de ser amigo de todos, em breve passarei a inimigo de todos. O meu crime é querer conciliá-los. Paga-lo-ei, pois eles unir-se-ão para me condenar. No entanto, quando os homens se tiverem fartos dos ritos e dos mitos e das maldições, hão-de recordar-se de que um dia, no tempo em que reinava o grande Sapor, um humilde mortal fez ressoar um grito através do mundo."

12:25 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Li recentemente um livro " Os Jardins de Luz" de Amin Maalouf, que retratam a vida de Mani, um homem de um outro tempo, ou talvez de outro planeta, que nasceu no ano de 216 da era cristã, ou no ano 527 segundo os astrónomos de Babel. É um exemplo de tolerância religiosa. Do livro guardei uns apontamentos interessantes, cito dois:

"Um dia, perguntaram-lhe:
-Que nome tem aquele de quem és o mensageiro?
-Eu chamo-lhe «oRei dos Jardins de Luz».
-Então não é o pai, o Todo-Poderoso, o infinitamente bom, o Criador de todas as coisas?
-Como poderia ele ser ao mesmo tempo bom e todo-poderoso? Foi porventura ele quem criou a lepra e a guerra? É ele quem deixa morrer as crianças e maltratar os inocentes? Foi ele quem criou as trevas e o seu senhor? Permitiu que este último existisse? Se pudesse aniquilá-lo com um gesto, porque não o faria? Se não quer aniquilar as trevas, é porque não é infinitamente bom; se quer aniquilá-las mas não o consegue, é porque não é infinitamente poderoso.
Após um breve silêncio, acrescentou:
-Ao homem é que foi confiada a Criação. É principalmente a ele que compete fazer recuar as trevas."

"-Professo todas as religiões e nenhuma. Ensinaram aos homens que eles deviam pertencer a uma crença como se pertence a uma raça ou a uma tribo. E eu digo-lhes: mentiram-vos. Em cada crença, em cada ideia, sabei achar a substância luminosa e separar as cascas. Quem seguir a minha senda poderá invocar Ahura-Masda e Mitra e Cristo e Buda. Aos templos que eu edificar, cada qual virá com as suas orações.
«Respeito todas as crenças, e é afinal este o meu crime aos olhos de todos. Os cristãos não escutam o bem que digo do Nazareno, eles censuram-me por não dizer mal dos judeus e de Zoroastro. Os magos não me ouvem quando faço o elogio do seu profeta [Zoroastro], só querem ouvir-me amaldiçoar Cristo e Buda. De facto, quando reúnem o rebanho dos fiéis, não é em volta do amor mas do ódio, é apenas em face dos outros que eles se encontarm solidários. Apenas se reconhecem como irmãos nos interditos e nos anátemas, e eu, Mani, longe de ser amigo de todos, em breve passarei a inimigo de todos. O meu crime é querer conciliá-los. Paga-lo-ei, pois eles unir-se-ão para me condenar. No entanto, quando os homens se tiverem fartos dos ritos e dos mitos e das maldições, hão-de recordar-se de que um dia, no tempo em que reinava o grande Sapor, um humilde mortal fez ressoar um grito através do mundo."

12:25 da tarde  

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