sexta-feira, março 10, 2006

Boa noite, liberdade

«Boa Noite, e Boa Sorte era inteiramente merecedor do Óscar do melhor filme e da melhor realização, mas acabou por não ganhar nenhum, e George Clooney recebeu apenas uma compensação simbólica como actor secundário num outro filme em que participou, Syriana. O melhor filme de Spielberg em muitos anos, Munique, uma obra dura e sombria, sem o sentimentalismo habitual do realizador, também não foi recompensado. E o grande favorito, Brokeback Mountain , perdeu o Óscar principal para Colisão, um engenhoso filme-mosaico à maneira de Altman, indiscutivelmente simpático no seu empenhamento anti-racista, mas menos propício a ferir susceptibilidades do que a crónica do amor trágico entre dois vaqueiros gay, que Bush declarou não querer ver.

Assim, depois da ousadia inédita de ter nomeado um conjunto de filmes politicamente (ou moralmente) incómodos, a Academia de Hollywood fez marcha atrás e preferiu distribuir o desconforto por muitas aldeias. Seja como for, esta confluência de filmes em ruptura com os padrões estafados do entertainment e dos blockbusters (sem esquecer o notável Capote do estreante Ben Miller) constitui um fenómeno altamente sintomático. Como se, perante a crise de credibilidade e o conformismo dos media tradicionais americanos, o cinema chamasse a si o papel de consciência crítica de uma sociedade onde o medo prenuncia o eclipse das liberdades.

Em Boa Noite, e Boa Sorte, George Clooney reconstitui, num contrastado preto e branco de film noir e com uma precisão maníaca de detalhes, a atmosfera da América "mccarthista" dos anos 50, quase sem sair do espaço fechado e claustrofóbico de um estúdio de televisão. Mas esse olhar clínico e quase "documental" (gerindo sagazmente a ambiguidade entre o "documental" e o "ficcional", sobretudo nas cenas em que aparece McCarthy como se fosse um actor do filme), em vez de nos afastar cinco décadas para trás, aproxima-nos da actualidade. Quanto mais rigorosa é a observação desse tempo datado, mais fortemente somos projectados, com uma eficácia fulgurante, para o tempo em que vivemos, para a América de George W. Bush, do Patriot Act e de Guantánamo.

Em momento algum Clooney propõe aproximações panfletárias e caricaturais - como faria Michael Moore - entre o "mccarthismo", a psicose do comunismo ou da Guerra Fria e o terrorismo ou as ameaças às liberdades civis nos dias de hoje. Nada disso é referido, ilustrado ou sublinhado a traço grosso. Nada disso está no filme - está em nós, na evidência de uma história que corre o risco de repetir-se e de que somos testemunhas. Quando, em Boa Noite, e Boa Sorte, ouvimos o jornalista Ed Murrow dizer que "não podemos defender a liberdade no exterior e abandoná-la em casa", sabemos que ele está a referir-se à América "mccarthista". Mas essas palavras soam com uma pertinência perturbadora nestes tempos em que o medo do terrorismo - como outrora do comunismo - está a minar os valores de civilização e as resistências democráticas das nossas sociedades. E é aí que começamos verdadeiramente a perder a batalha - como Murrow também alertou - a favor dos inimigos da liberdade.

O caso das caricaturas de Maomé veio tornar mais nítido o perigo dessa derrota. Temos, por um lado, os que em nome do respeito pelas crenças religiosas aceitam abdicar de princípios essenciais das sociedades seculares e democráticas, cedendo à chantagem do fanatismo. "Compreensível", diria Freitas do Amaral. E temos, por outro lado, aqueles para quem o combate ao terrorismo justifica (ou pelo menos desculpa) a restrição arbitrária e crescente dos direitos civis nas democracias ocidentais. "Compreensível", argumentaria Dick Cheney.

Para além das suas diferenças ideológicas, esses dois campos convergem numa idêntica cegueira e num mesmo desprezo pelas liberdades. Ora, a luta contra a chantagem do fanatismo religioso - ou dos interditos à ofensa do sagrado, como alguns pretendem - não se pode separar da luta contra o arbítrio securitário que, a pretexto do terrorismo, faz tábua rasa dos direitos civis no mundo democrático.

O debate parlamentar de quinta-feira passada sobre a posição do ministro dos Estrangeiros acerca das caricaturas de Maomé confirmou, infelizmente, as piores previsões. Nem a esquerda nem a direita se apercebem do que está em jogo, quer quando se absolve como "compreensível" a violência fanática, quer quando se assiste passivamente aos atentados contra o Estado de direito no Ocidente.»

Vicente Jorge Silva
Jornalista