quinta-feira, abril 07, 2005

Ordem da narrativa

Aplicação: Para contrapor às teses de que a notícia começa pelo fim e o romance começa pelo princípio: começam os dois pelo fim


«Viver é isto. Mas quando se conta a nossa vida, tudo muda; somente, é uma mudança que ninguém nota: a prova é que se fala de histórias verdadeiras. Como se pudesse haver histórias verdadeiras! Os acontecimentos produzem-se num sentido e contamo-los no sentido inverso. Dir-se-ia que começamos pelo princípio. “Era numa linda tarde de Outono, em 1922.” E na realidade foi pelo fim que começámos. O fim já está nessas poucas palavras, invisível e presente; é ele que lhes dá a pompa e o valor de um princípio. “Andava a passear, tinha saído da vila sem dar por isso, a pensar nas minhas dificuldades de dinheiro.” Esta frase, tomada simplesmente pelo que é, quer dizer que o homenzinho estava absorto, deprimido, a cem léguas de uma aventura, precisamente no género de humor, em que se deixam passar os acontecimentos sem lhes dar atenção. Mas o fim já está nela a transformar tudo. Para nós, o homenzinho é, desde já, o herói da história. A sua depressão, as suas dificuldades de dinheiro são muito mais preciosas do que as nossas; doura-as a luz das paixões futuras. E a narração prossegue ao contrário: os instantes deixaram de se empilhar ao acaso uns por cima dos outros, morde-os o fim da história, que os atrai, e cada um deles atrai, por sua vez, o instante que o precede: “Estava escuro na rua deserta.” A frase é atirada com negligência, traz um jeito de supérflua; mas não caimos no logro e pomo-la de reserva: é uma informação, cujo valor aparecerá mais tarde. E temos o sentimento de que o herói viveu todos os pormenores dessa noite como anun­ciações, como promessas, ou até de que só vivia os que eram promessas, cego e surdo a tudo quanto não anunciasse a aventura. Esquecemos que o futuro ainda não estava com ele; o homenzinho andava a passear numa noite sem presságios, que lhe oferecia à matroca as suas riquezas monótonas, e que ele não escolhia. Quis que os momentos da minha vida se seguissem e se ordenassem como os de uma vida que se rememora. O mesmo, ou quase, que tentar apanhar o tempo pelo rabo.»

SARTRE, Jean-Paul (1938, trad. s/d), A Náusea, Trad. António Coimbra Martins, Lisboa, Europa-América, pp.55 e 56